Sentimento de não pertencer nem lá nem cá.
Marta (*) saiu do Brasil em 2012, rumo à França. No início foi um bocado difícil se adaptar à nova cultura. Por mais que estudasse o francês, sempre faltava uma palavra, sempre se dava conta do erro gramatical que tinha cometido ao ver o ponto de interrogação na expressão do rosto de quem conversava com ela. No trabalho, ficava muito irritada quando um colega, sem saber o que responder, simplesmente ignorava seus e-mails. Em casa, sentia falta de um singelo tanque para lavar panos de chão e os banheirinhos dos gatos: “nunca pensei que eu sentiria falta de um tanque de lavar!”, dizia ela. “Esse pessoal lava os panos de chão junto com suas lingeries?”, perguntava ela, intrigada. Aos poucos, foi se integrando à comunidade local. Tirava de letra a complexa estrutura de impostos do país, conhecia várias regiões, pertencia a grupos sociais e de trabalho diversos. Mas, ainda que estivesse dominando 100% o idioma, sempre havia alguém que perguntava: “de onde você vem?” E ela ficava incomodada com a pergunta.
Quando ia ao Brasil, se era inverno morria de frio; pois praticamente nenhum lugar tem aquecimento. Ficava indignada ao ver as recorrentes notícias sobre corrupção e a falta de manifestação popular. Tirava relógio e brincos ao sair na rua, com medo da violência, e evitava pegar ônibus, pois eles estavam sempre atrasados. E não entendia mais por que as pessoas aceitavam produtos de baixa qualidade e não reclamavam com as empresas produtoras. Quando se encontrava com amigos, lá vinha aquela enxurrada de perguntas sobre como era morar fora do país, e sobre o que achava bom e o que não era tão bom assim.
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Uma vez, quando perguntada sobre as saudades que sentia do Brasil, ela respondeu: “na verdade, não sinto exatamente saudades. Estou bem onde estou.” Essa resposta saiu tão facilmente de sua boca que ela na verdade se espantou. E foi aí que se deu conta de que não se sentia mais completamente à vontade em voltar ao seu país de origem. Não que não o amasse, mas….voltar a viver ali? A vida, no Brasil, já não era mais tão natural para ela quanto antes. Ao mesmo tempo, ela era e seria sempre uma estrangeira na França, não importa quantas baguettes comesse. Esse pensamento a assustou: “e agora? Eu não tenho mais um lugar pra chamar de meu nesse mundo?! Sou estrangeira aqui e sou estrangeira no meu próprio país. E agora?!”
Essa sensação relatada pela Marta(*) é mais comum do que imaginamos. Conheço muitas histórias similares, até mesmo de pessoas que querem voltar aos seus países de origem, mas não conseguem mais se integrar como antes.
Há vários fatores que geram mudanças na nossa personalidade quando moramos em lugares com culturas diferentes da nossa. Pesquisadores e psicólogos chineses e americanos, por exemplo, defendem que o aprendizado intenso de outro idioma influencia nossa personalidade. Por exemplo, culturas mais introvertidas e objetivas, quando aprendem idiomas de países com vocabulário e construções gramaticais mais longas, tendem a se soltar mais e a falar mais. Outro estudo diz que sempre que nos ouvimos falar outro idioma, há um certo estranhamento, como se não fosse a gente mesmo falando. Muda nosso tom e o ritmo da voz e, ao passar dias e dias se expressando em outra língua pode ser cansativo e nos trazer a nostalgia de voltar a ser quem a gente era. Esses são apenas dois exemplos ligados à linguagem falada e escrita; mas há, claro, todas as outras interações culturais que temos e os níveis de integração que possuímos.
Porém, o que fazer se esse sentimento de “não pertencer” nos atingir?
Eu, sinceramente, não tenho resposta. E acho que não existe uma resposta única para isso mesmo. Como coach, minha primeira pergunta costuma ser: esse sentimento de ‘não pertencer’ realmente o/a incomoda? Por que o/a incomoda? Ao identificar o que está por trás dessa necessidade de pertencimento, quase sempre encontramos outras necessidades que, uma vez preenchidas, nos deixam mais confortáveis e em paz.
É interessante a gente se lembrar que, ao passar a viver (por algum tempo ou para sempre) em um novo país, a gente muda. MESMO. Não há como ser a mesma pessoa que a gente sempre foi. O volume de aprendizado é tão alto que é impossível não mudar em aspectos como valores, interesses e, é claro, necessidades. Nosso olhar muda, nossa visão cresce. Aprendemos uma parte do que se chama DIVERSIDADE na veia. Eu me lembro do comentário que fiz para minha mãe, após a primeira viagem que fiz ao exterior, no final da adolescência: “puxa, mãe, como as coisas são relativas, não é? O que se faz de um jeito no Brasil, se faz de modo diferente na Europa. E os dois modos estão certos e levam a resultados similares! Que legal!”
Talvez, um dia, nessa hora em que bater a sensação de “não pertencer” você possa começar a sentir uma liberdade que jamais teve. Você pode estar no Brasil, na França, na China, no México ou em qualquer outro lugar do planeta. Você realmente não mais pertencerá a lugar nenhum, e sentirá a liberdade de poder escolher estar bem onde estiver. Você será um/uma habitante da Terra, e sentirá que isso o/a bastará. Nesse dia, vai notar que pertence a você mesma!
(*) nome fictício