Há um mês atrás, recebi minha primeira multa de trânsito em toda minha vida e, para comemorar este acontecimento, que me deixou muitas coroas mais pobre, achei que seria interessante olhar o lado cheio do copo e escrever sobre como superei o medo de dirigir quando me mudei para a Dinamarca e como os brasileiros podem obter a carteira de motorista.
Bem, vamos voltar no tempo para explicar essa história toda. Quando eu era adolescente, esperava pelo dia no qual poderia tirar carteira e ir pra onde eu quisesse sem depender de ter que importunar minha pobre mãe pedindo carona.
Tudo ia bem e, quando fiz 18 anos, comecei as aulas teóricas na auto escola. Passei na prova teórica tranquilamente, e então fui encaminhada para as aulas práticas, e também para o meu pior pesadelo. Por muito azar, meu instrutor não era nem um pouco profissional e não perdia a oportunidade de fazer comentários indevidos que me deixavam profundamente constrangida e paralizada de pavor.
Na época, eu tinha apenas 18 anos e não sabia como reagir a esse tipo de assédio: me sentia envergonhada pelo comportamento dele, e mais envergonhada ainda por não saber como lidar com essas atitudes. Se fosse hoje, eu faria um barraco fenomenal, falaria com a direção da escola e exigiria a responsabilização do funcionário, mas infelizmente esse tipo de segurança é fruto do tempo, da experiência e da maturidade, e àquele tempo tudo isso me faltava: eu era desajeitada, insegura e achava que se ele tinha me desrespeitado era porque eu “não tinha me dado o respeito suficiente”.
Pois bem: depois de quinze aulas sob estresse, pânico e pavor constantes, eu criei uma resistência gigantesca a dirigir, apesar de ter passado na prova de direção. Para piorar um pouco mais este cenário, um colega da universidade faleceu em um acidente de carro inexplicável, no qual a direção simplesmente saiu do lugar e literalmente caiu no colo do motorista, que não teve como evitar a colisão. A soma desses acontecimentos foi interpretada pelo meu subconsciente como um sinal divino para nunca me aproximar do volante.
Entrar em um carro no lugar do motorista me deixava nauseada, nervosa e suando frio, e era algo que eu só fazia em emergências, casos de vida ou morte, hecatombe nuclear ou invasão zumbi. Como é que eu, tão destrambelhada para tudo, poderia dirigir um dia sem colocar em risco a segurança daqueles que se encontram em um raio de 70 km de mim e de minha falta de qualquer habilidade motora?
Em um certo momento, aceitei que jamais dirigiria, e passei a ver minha vida por outra perspectiva. Eu tentei não me cobrar tanto, e me acostumei com o transporte público e com a boa-vontade dos meus amigos e família motoristas designados, e minha ansiedade e angústia foram passando aos poucos. Já não me sentia uma total incompetente por não dirigir, afinal, tem tanta gente que não faz as coisas que eu faço: eu viajava o mundo inteiro, aprendia línguas novas e era extremamente dedicada ao meu trabalho. Deus iria abonar esse probleminha automobilístico no juízo final, pensava eu.
Para melhorar ainda mais as coisas, me mudei para a Dinamarca, o país das bicicletas, no qual, entre meu círculo de amigos, ninguém tinha carro. Aqui, a maioria do povo pedala e usa o transporte público, e eu estava muito feliz assim, exceto nos dias de chuva torrencial e nevasca, nos quais eu chegava em casa numa mistura de suor e neve derretida escorrendo pelo rosto, ensopada, resfriada e amaldiçoando essas dinamarquesas de pernas compridas que conseguem pedalar elegantemente em qualquer tempo. Apesar das dificuldades, eu adorava a vida de ciclista, e circulava alegremente por todos os lados na minha bicicleta vermelha esmaltada, a Red Thunder.
Contudo, em junho do ano passado, veio a notícia de que eu iria trabalhar em outra cidade, e se o trajeto de bicicleta era impraticável por seus quarenta e poucos quilômetros entre ida e volta, o transporte público era deficiente, moroso e caro, dada a distância. Como meu marido trabalhava na mesma instituição, fazia sentido termos um carro e, consequentemente, eu deveria enfrentar meus piores medos e voltar a dirigir, sob pena de gastar mais de 3 horas por dia em transporte público nos muitos dias nos quais minha cara-metade trabalhava de casa e não estava a cargo da direção.
Depois de hiperventilar, passar noites em claro amedrontada com o medo de fazer alguma coisa errada no trânsito e chorar de soluçar, meu paciente esposo me encorajou e me convenceu a ao menos tentar, e aos pouquinhos, dirigir. Então, começamos a investigar como eu deveria proceder para fazer a carteira de motorista aqui, o que em si já era um processo que me trazia péssimas recordações. Entretanto, recebi a feliz notícia de que o processo é bem mais simples para aqueles que tem a carteira de motorista brasileira pois, por conta de um tratado internacional, a Dinamarca aceita a troca da CNH brasileira pela dinamarquesa sem maiores problemas.
Para isso, você precisa realizar um exame médico específico com seu clínico-geral e levar este documento, juntamente com seu passaporte, visto, CPR (o cartão de saúde, por exemplo) e sua CNH (mais uma tradução juramentada) até o Borgerservice. Lá, é só preencher um formulário, pagar uma taxa e entregar os documentos, e você já sai com a carteira provisória, pois a definitiva será enviada após a polícia conferir sua situação no Brasil e autorizar a troca da carteira, um processo que costuma demorar de dois a seis meses, nos quais você pode renovar sua carteira provisória.
De carteira dinamarquesa na mão, passei a me aventurar aos poucos, e depois de apagar o carro algumas vezes, de entrar na contramão em diversas ruas e de levar uma buzinada por dia, a organização do transito dinamarquês me fez sentir mais segura para encarar as estradas. Aqui, os motoristas costumam ser cautelosos e educados, diferentemente dos ciclistas, que atropelam pedestres, passam nos sinais vermelhos e são basicamente responsáveis por toda a dor de cabeça que você vai ter ao dirigir (depoimento de uma ciclista – eu – consciente dos absurdos que faz).
No quesito estacionamento, também levei algumas multas menores por não me dar conta que havia parado nas vagas reservadas somente para carros elétricos, ou porque o relógio do carro que conta os minutos de estacionamento ficou sem pilha e o fiscal achou que eu estivesse estacionada na mesma vaga há 20 horas, e não 20 minutos.
Outras diferenças entre as regras de trânsito do Brasil e da Dinamarca me fizeram causar furor no trânsito: no Brasil, se o sinal está verde, você pode ir pra onde quiser; aqui, para dobrar à esquerda, você deve esperar em uma faixa no meio da pista, mesmo com o sinal verde, e só virar quando todos os carros no sentido oposto tiverem passado.
Demorei umas duas semanas de muita emoção para aprender isso e, falando em emoção, é impossível não mencionar toda a aventura que o clima dinamarquês proporciona ao seu dia a dia.
Um dia, uma nevasca desabou enquanto eu ia para o trabalho, nos tempos em que eu ainda me sentia nervosa e insegura para dirigir. O carro deslizava como se estivesse em uma pista de patinação no gelo, pois obviamente, vinda do Brasil, não me ocorrera trocar os pneus normais por pneus de inverno, próprios para esta realidade. Foram minutos de tensão com meu mini-carrinho de bolso, que mais parecia jogar hóquei na pista, mas cheguei sã e salva ao trabalho, enquanto incontáveis veículos derrapavam e apagavam na beira da estrada.
Nesse dia, cheguei em casa orgulhosa, e se antes eu era extremamente amedrontada e cautelosa na direção, hoje vou e volto tranquilamente do trabalho, pego estrada, neve e tempestade, e a menina que tinha tanto medo ao ponto de sempre dirigir a 2 km/h acabou até se passando e recebendo uma merecida multa por excesso de velocidade. Bem, a lição foi aprendida, mas a verdade é que eu não consigo deixar de ver o lado positivo dessa multa, porque, para mim, ela simboliza a superação de um trauma. No fim das contas, cabe a nós escolher como escrever a nossa história e como encarar os acontecimentos dessa vida, e aqui na Dinamarca eu finalmente tive segurança para dirigir e também para conduzir a minha própria vida para aonde eu bem entender.
Abraços e até a próxima!
9 Comments
Sempre me surpreendo com suas histórias ????.
Estou no mesmo caminho, agora as bikes que se salvem????.
Super abraço!
Muito obrigada, Elis! O importante é ser paciente com a gente mesma, e não desistir 😀 Beijos e boa sorte!!!
Olá Camila,
Gostei muito de sua página! Eu moro há quase 3 anos na Dinamarca e nao conhecia. Tenho uma dúvida- se a CNH brasileira estiver vencida- o processo é o mesmo? Ou tenho uq erenvar primiro (indo ao brasil).
Obrigada,
Denise
Oi Denise, tudo bem?
A CNH tem que estar em dia. Beijos e boa sorte.
Adorei o seu post, muito bem explicado. Agora só vai ter como renovar a habilitação brasileira no Brasil e com prova, então queria tirar a minha dinamarquesa pra usar aqui e lá! Sabe como funciona a renovação da habilitação dinamarquesa?
Olá Caroline,
A Camila Vicenci Witt parou de colaborar conosco, mas temos outra colunista na Dinamarca chamada Cristiane Leme que talvez possa te ajudar.
Você pode entrar em contato com ela deixando um comentário em um dos textos publicados mais recentemente no site.
Obrigada,
Edição BPM
Gostaria de saber se tem um contato… Preciso de ajuda, pois em fevereiro me mudo para Dinamarca…
Olá Lya,
A Camila Vicenci Witt parou de colaborar conosco, mas temos outra colunista na Dinamarca chamada Cristiane Leme que talvez possa te ajudar.
Você pode entrar em contato com ela deixando um comentário em um dos textos publicados mais recentemente no site.
Obrigada,
Edição BPM
Lya, contato para tirar carteira de motorista? Ou contato de brasileira na Dinamarca?
Se for o segundo, procure pelos grupos de brasileiras e brasileiros na Dinamarca no Facebook, tem vários.
Caso a sua pergunta seja relacionada a carteira de habilitação, pergunte que tentaremos ajudar. Somos 4 colunistas do país aqui no BPM.