No último mês fui marcada no Facebook por mais de 20 pessoas que leram uma matéria sobre a Finlândia com o seguinte título: ”Finlândia vai testar sistema em que trabalhar será uma escolha”. A primeira coisa que pensei ao ler esta chamada foi: ou o título desta matéria foi escolhido para chamar a atenção e fazer as pessoas clicarem no link ou a pessoa que a escreveu é totalmente louca.
No momento a Finlândia enfrenta uma crise econômica braba, com cerca de 10% da população desempregada, mercado interno em declínio e uma série de outros problemas. Tudo o que o governo quer e precisa conseguir é acabar com isso para o país não falir, não faria nenhum sentido criar um sistema em que as pessoas recebem dinheiro para trabalharem somente se quiserem.
Pois bem, li o artigo e o conteúdo em si não discorria exatamente sobre o tema do título (prova que só queriam cliques mesmo), mas falava sobre a possibilidade de o governo finlandês implementar um sistema de renda básica para todos a partir de 2017. A matéria era mais ou menos uma tradução desta que saiu no site da BBC.
Foto: Vesa Moilanen/Lehtikuva
E as ”marcações” continuaram num total de seis matérias diferentes que saíram no Brasil sobre o assunto. Cada uma delas com um título chamativo, dando a entender a qualquer leitor que o governo irá efetivamente testar a renda básica universal e que existe um projeto-piloto pronto para entrar em vigor em 2016.
A discussão sobre o pagamento de uma renda básica existe sim, é verdade, mas não é verdade que o governo está pronto para implementar um projeto, não é verdade que exista uma data para isso e nem que esta renda será universal, ou seja, paga a todos os cidadão sem restrição. Também não é verdade que se pensa em pagar um valor alto o suficiente para substituir todos os benefícios sociais.
O que é verdade?
A discussão sobre a renda básica universal já existe na Finlândia desde os anos 40 e no mundo desde o século XVIII. Os partidos finlandeses principais apoiadores da ideia são os Verders e a Aliança Nacional de Esquerda. Dentre os partidos da direita, o da Coalizão Nacional e o Centro, que junto com os Finns formam o atual governo de coalizão, apoiam a ideia de se fazer um teste, mas não possuem proposta definitiva ainda . Vale ressaltar também que, mesmo dentre os parlamentares e partidos que apoiam a ideia de uma renda básica, não é a maioria que apoia que ela seja universal. Muitos dos que simpatizam com a ideia acham que a renda básica deve ser concedida somente para grupos de até uma determinada renda , como ferramenta de redução da pobreza.
O sistema de seguro-social daqui é muito caro e complexo. A burocracia em torno dele também. Em cada municipalidade há pelo menos três departamentos diferentes do governo que lidam com as questões dos benefícios, todos com um número grande de funcionários e muitas vezes com prédios próprios. A ideia de adotar um sistema de renda básica abre a discussão de se seria possível para o governo economizar implementando este sistema, pois poderia desburocratizar parte do sistema de seguro-social reduzindo, assim, custos com escritórios, funcionários e abolindo alguns dos benefícios de valor parecido, substituindo-os por apenas um.
No entanto, isso ainda é uma discussão e não existe nada concreto de que vá acontecer.
O que está em pauta no momento é uma pesquisa inicial que vem sendo realizada pela Instituição Finlandesa de Seguro Social (KELA), que visa estabelecer um valor para a realização de um projeto-piloto, que testaria o sistema em 8 mil pessoas de baixa renda. Este projeto, caso aprovado, terá tempo determinado e o valor a ser recebido deve ser algo em torno de 550€ por mês. Segundo o KELA, um sistema de renda básica que realmente possa substituir sem burocracia a maior parte dos benefícios atualmente pagos, seria algo em torno de 800€ por mês, mas este valor ainda está no mundo das ideias e das suposições.
A proposta de um projeto-piloto de renda básica será entregue ao governo em novembro de 2016 para ainda ser votada, ou seja, não há nenhuma garantia nem mesmo de que o projeto-piloto vá ser executado.
Segundo entrevista concedida pelo presidente da BIEN Finland, Otto Lehto, ao website oficial da BIEN (Basic Income Earth Network), ” É improvável que um sistema de renda básica universal e incondicional tenha qualquer chance de ser experimentado.” Leia mais aqui sobre o assunto.
A segunda matéria sobre a qual gostaria de falar já foi corrigida em alguns sites brasileiros, mas a correção não foi tão popular quanto a matéria errada, pelo menos ninguém me marcou na correção. Trata-se de um artigo que dizia que a Finlândia será o primeiro país do mundo a abolir o sistema de divisão por matérias nas escolas e adotar um sistema totalmente multidisciplinar, baseado em tópicos (fenômenos).
Confesso que neste artigo até eu acreditei, pois saiu primeiro no The Independent UK e parecia muito completo. Apesar de não ter lido nada sobre os assunto em periódicos finlandeses, sei que recentemente houve uma revisão e atualização do programa nacional e do sistema educacional (isso é feito a cada 10 anos para não permitir que este se torne obsoleto) por isso, não questionei a matéria.
Mas pois é, não é bem assim e agradeço ao blog Finlandeando pelo esclarecimento, pois foi o único que divulgou essa correção dentre todos os outros blogs que sigo.
As explicações da matéria sobre o ensino multidisciplinar e do porquê da Finlândia estar querendo, aos poucos, introduzir isso em todas as escolas são verdadeiras. O que não procede, no entanto, é dizer que o país irá eliminar do currículo todas as matérias.
O que entrou em vigor é que as escolas deverão por UM PERÍODO a cada ano colocar em prática pelo menos UM projeto multidisciplinar. No resto do ano todo os alunos continuarão a estudar as matérias normalmente. Existe a intenção de que num futuro que não se sabe quando, seja possível executar projetos multidisciplinares mais de uma vez por ano, quem sabe até três vezes, mas não existe um projeto que vise eliminar o ensino por matérias.
É isso, gente. Temos que realmente aprender a questionar o que lemos. Hoje em dia para os veículos de mídia cliques e compartilhamentos têm um valor muito superior a verdade. E não é só no Brasil, é no mundo inteiro. Nós, leitores, para nos mantermos informados da maneira correta temos que, acima de tudo, ser pesquisadores e questionadores, principalmente quando o que lermos for ”bom demais para ser verdade”.
Desejo a todos um Feliz Natal e um ano novo cheio de paz e prosperidade. Caso queiram saber um pouco sobre o belo Natal na Finlândia, leiam meu texto sobre isso de dezembro passado. Até janeiro!
12 Comments
Olá Maila! Como seria essa tal da “renda básica” na prática? Isso não ficou muito claro pra mim. É um benefício para algumas pessoas (desempregadas e pobres, por exemplo); serve para nivelar o salário de todos os trabalhadores…? O que os finlandeses pretendem fazer com essa implementação? Obrigado pelas informações!
Olá Elias,
A renda básica universal, na teoria, é uma quantia em dinheiro paga a todos os cidadãos maiores de idade, independente do quanto ganhem. A ideia é que recebendo este dinheiro, o governo pode abolir a necessidade de ajudas sociais tipo seguro desemprego, auxílio moradia, auxílio de integração, auxílio para estudantes, etc. Os que defendem o modelo acreditam que o governo economizaria dinheiro adotando o sistema, pois desburocratizaria o sistema de seguro social. Não seriam mais necessários os escritórios e os funcionários pagos para organizar esses serviços. Eles também acreditam que isso estimularia as pessoas de baixa renda a se aprimorarem para buscar melhores trabalhos, os desempregados a buscar por trabalhos temporários ( muitos não buscam por essa opção porque a burocracia para depois voltar a receber os benefícios é gigantesca e um pouco demorada). Acreditam que isso também estimularia o consumo interno e impulsionaria o mercado que está em declínio no momento. Mas como expliquei no texto, não existe nenhum projeto pronto para implementação e nem nenhuma garantia de que essa renda básica será universal. Isso ainda é uma ideia. O governo encomendou uma pesquisa para analisar possibilidades de como isso poderia ser feito e se seria financeiramente viável. Depois de pronta a pesquisa, caso o projeto seja aprovado, será feito um teste com 8 mil pessoas para só depois disso pensarem na possibilidade de implementação, portanto, não há garantias. Um abraço
Acredito que essas notícias sensacionalistas que são divulgadas na mídia internacional são pra reforçar a ideia de que a grama do vizinho é sempre mais verde. O problema é mesmo a preguiça das pessoas em procurar se informar melhor e através de diversas fontes. Também acontecem des-informações desse tipo em relação à Dinamarca: a mais recente foi sobre a suposta proposta do governo dinamarquês de transformar a agricultura do país em 100% orgânica, o que tem lá um fundo de verdade (há projetos nesse sentido) mas não há uma proposta concreta definindo que todo o cultivo do país deverá ser orgânico a partir de uma data estipulada. Seu artigo é um ótimo alerta para o pessoal começar a ficar esperto e questionar mais o que lê, parabéns! Bjo
Olá Cristiane,
Concordo plenamente com o que você escreveu. Me lembro da matéria que você mencionou sobre a Dinamarca, acho que iclusive te marquei no post quando li, exatamente porque queria saber se era verdade.
Temos que questionar tudo o que lemos, principalmente se a fonte não for oficial do país onde supostamente o caso ocorre. Um abraço
Sobre a França acontece o mesmo Maila, eu já desisti de falar pra acreditarem menos nessas matérias, eles exageram demais! beijos
Olá Jéssica,
É verdade, em geral as pessoas acreditam em tudo o que lêem e a mídia fantasia cada vez mais as matérias.
Beijos
OLá Maila,
Informação correta e sem “confete” é o que falta ultimamente. Acho que esse tipo de matéria sensacionalista ajuda a criar falsas expectativas e incentiva muita gente a imigrar sem parâmetros na realidade.
Isso acontece com informaçoes sobre a Holanda também em vários aspectos, reforçando uma imagem que nao é real em sentido nenhum.
O que acontece atualmente é que muitas pessoas “”engolem”a informação e não refletem minimamente sobre o que está lendo, pois se refletissem só um pouquinho veriam que nao faz sentido.
Abs
Olá Cintia,
Concordo com você plenamente. O que recebo de mensagens de pessoas com o sonho de imigrar por conta de expectativas criadas em cima de uma ilusão…
E tenho lido constantemente notícias com “confete” conforme você descreveu sobre diversos assuntos. Fico com pena das pessoas que se deixam levar tão facilmente. Infelizmente a visão crítica e investigativa das pessoas está muito abalada ultimamente. Abs
Oi Maila, adorei o texto. Beijos
Boa tarde tenho uma amiga brasileira, que esta morando há 07 anos na Finlandia.nossa ela fala maravilhas do pais…que ganha bem como cuidadora..tem carro, celular e casa……mas estranhamente ela achou caro pagar apenas a irrisoria quantia de 65,00 por uma bermuda jeans achou carissima…..eu estranhei pq se está bem o que é esse valor ….” cabe esclaracer que ele come frango 02 vezes por anos la…..pq o kilo custa em, torno de 60 reais………inversão de valores……qq dia vou visita-la….e me fez lembrar uma outra pessoa que mora ha 10 anos na Italia…..fala horrores do Brasil……(mora em um quarto dividindo banheiros com 10 outros moradores romenos)
A matéria é simplesmente isso: criar uma renda à qual todos os cidadãos teriam direito, primeiramente como um eficaz instrumento de redução da desigualdade e garantia da liberdade individual e não menos importante, abolir todos os outros penduricalhos que seriam substituídos por essa única renda. Seu objetivo seria garantir uma vida digna a TODOS os cidadãos, que provavelmente seria atingido depois de algum tempo de elevação desse valor. Se considerar apenas o enxugamento do estado, provavelmente só isso já garantiria os recursos necessários. E talvez aí esteja o grande empecilho: por serem exatamente os cargos majoritariamente ocupados pela esquerda, iriam privá-la de sua principal fonte de renda e de controle sobre o estado e o cidadão. Em outras palavras, tal medida iria significar o fim da esquerda…
Obrigada por dividir seu ponto de vista, mas gostaria de adicionar um porém: os maiores apoiadores da renda básica universal na Finlândia são exatamente os partidos de esquerda. Parece um tanto contraditório, não?