Elas são pequenas de estatura, porém são a fortaleza da sociedade indonésia. Num país onde ainda o machismo, autoritarismo e desigualdade de gênero são menu diário, elas tentam buscar seu lugar ao sol. Possuem um olhar simpático, sorrisos tímidos e com aspecto quase infantil. Aliás, o tempo parece não passar para essas mulheres. As marcas do tempo e da experiência que adquiriram ao longo de suas vidas, quase não ficam expostos em seus rostos. Ombros e braços delgados são fortes ferramentas de trabalho, levam aí uma vida de labuta e nas costas carregam não apenas seus filhos, em seus tecidos de batik, mas muitas vezes também a responsabilidade de manter uma família toda.
Embaixo de seus hijabs, algumas escondem não apenas seus longos e negros cabelos lisos como a seda, mas também seus desejos de uma vida exitosa. E para cada uma delas, os sonhos podem ser representados por coisas bem diferentes. Para algumas, o sucesso seria casar-se bem antes dos 25. Aos 30 já terem família completa, serem avós aos 45. Essa é quase uma realidade para a maioria das famílias indonésias. Tão logo se casam, começam a corrida contra o tempo para dar ao marido e à família o primeiro herdeiro.
Muitas delas estudaram, se formaram em grau universitário, trabalham oito horas por dia, como em qualquer sociedade moderna. Mas, por trás dessa falsa sensação de liberdade, há desigualdade de salários, de direitos e de cargos disponíveis para elas.
Ainda espera-se da mulher indonésia que seja boa esposa, boa cozinheira, boa mãe, que seja delicada, que tenha a pele o mais clara possível (ainda que a maioria seja descendentes de povos indígenas), que não fale alto, que não discuta com o marido. Que seja a representação da Princesa Sita ou de alguma esposa de Maomé.
Porém, para sorte das indonésias, há exemplos mais reais a serem seguidos. Há heroínas de verdade, de carne e osso, que deram vez e voz aos direitos femininos. E uma dessas heroínas foi Kartini.
Raden Ajeng Kartini foi pioneira no que se refere à defesa dos direitos das mulheres na Indonésia. Nasceu em 21 de abril de 1879, em Majong, região de Jepara, (Java Central) e era filha de uma família da aristocracia javanesa. A mãe, Ngasirah, era a primeira de três esposas de Raden Mas Sosroningrat, o pai, que trabalhava para o governo colonial holandês. Isso permitiu a Kartini ingressar a um colégio com idioma holandês aos 6 anos. Porém, com o segundo matrimônio o pai de Kartini passa a ser Regente da região de Madura. E como era de se esperar de uma família nobre, as filhas deveriam ser criadas sob reclusão. Kartini deixa então a escola aos 12 anos de idade e passa a ser “preparada” para o matrimônio. A jovem garota com ideais bastante ocidentais continua a corresponder-se com amigas holandesas. Kartini recebe uma bolsa de estudos para ser estudar em Batavia (atual Jacarta).
Mas seus planos são interrompidos pelo casamento com Raden Joyodiningrat, governador de Rembamg, 26 anos mais velho que ela, e torna-se sua terceira esposa. Aos 24 anos uma jovem javanesa já era considerada “velha” para conseguir casar-se. E ainda nos dias de hoje há essa mesma ideia, principalmente a partir dos 30 anos da mulher.
Com o apoio do marido, Kartini consegue concretizar seu projeto para escolarizar garotas javanesas, independente de suas classes sociais e dá início a uma pequena escola, dentro da casa dos pais, com currículo progressista e de orientação ao empoderamento feminino. Lamentavelmente, a jovem feminista falece no ano seguinte, aos 25 anos, por complicações no parto de seu único filho. Alguns anos depois de sua morte, um livro com suas cartas às amigas é publicado por Mr. J.H Abendanon com o título “Door Duisternis Tot Licht” (Da escuridão à luz), em inglês com o título de “Letters of a Javanese Princess” (Cartas de uma princesa javanesa).
O nome de Kartini está estritamente relacionado à mulher indonésia e tudo que se refere a ela. Desde a instituição de várias escolas pelo país com seu nome, a spas e concursos de beleza pelo país afora. Em 1964, o presidente Soekarno declara Kartini como heroína da Indonésia e institui seu aniversário de nascimento, 21 de abril, como feriado nacional (Kartini’s Day). O dia é celebrado aqui como um dia de homenagem às mulheres.
Apesar da história de Kartini não terminar com uma mulher queimando o sutiã em repúdio à desigualdade de gênero, exigindo os direitos feministas e conquistando seu espaço num mundo tão masculino, apresenta a uma jovem que cultivava sonhos possíveis, mas que esbarrava em tradições culturais e éticas de seu tempo, que lutou com o que podia para expandir e dividir o que sabia com outras mulheres e esclarecê-las de seu poder.
Num país onde a mulher ainda é colocada em situações extremas de submissão, onde são obrigadas a aceitar poligamia pelas leis religiosas, onde são açoitadas em público por terem conversado a sós com outro rapaz (ver notícia aqui), é preciso que ainda muitas “Kartinis” saiam à luz e ao empoderamento, em luta pelo respeito à mulher indonésia. Essas mesmas mulheres, com seus negros olhos amendoados, vislumbram um país onde suas oportunidades sejam muito mais amplas do que apenas contentarem-se com um belo e colorido vestido de noiva.
Links relacionados:
Mulher é açoitada em público. (Texto original em inglês publicado pelo Dailymail UK).
Cidade Indonésia proíbe mulher na garupa de motos.
Proibição de vida noturna para mulheres em Aceh.
1 Comment
Adorei Gisele. Me orgulho em ver que voce não passou por tantos lugares em vão, você viu e aprendeu muitas coisas boas, tudo isso faz muita diferença em sua vida, são aprendizados e coisas vividas que jamais serão esquecidas.
Tenho certeza que tudo isso é um tesouro que jamais será roubado, pois estará sempre muito bem guardado em sua mente e coração com muito carinho e poderá ser contado aos filhos e netos toda suas experiências vividas.