O nascimento de uma feminista na Suíça.
Quando surgiu a oportunidade para vir passar uma temporada na Suíça, minha vida
pessoal estava enevoada e eu tentava idealizar um futuro pacífico e idílico. Largar tudo – casa, projetos profissionais, amigos e minha própria história – carregar apenas os filhos, umas roupas, todos os livros e móveis de família, pedir uma licença no trabalho, enfim, tudo me parecia razoável. Era a permissão temporária para eu me reencontrar. Mas, o que eu não poderia supor é que a Suíça viria a fazer de mim uma mulher feminista.
Chegando em Basel, em 2016, eram tantas etapas para colocar a vida nos trilhos –
encontrar uma casa, escolher a escola das crianças, colocar a mobília no lugar, descobrir a
cidade, aproveitar o verão europeu, fazer novas amizades – que não me sobrou tempo e nem disposição para ir às palestras de percepções culturais e de boas-vindas aos expatriados. Eu pulei todas essas formalidades, porque tinha a falsa crença de que estávamos vivendo num mundo globalizado e interligado, e que nada poderia ser assim tão diferente de um continente para o outro.
Então, começaram a surgir umas questões, nos mais variados ambientes, que passaram a
me instigar: “Você vai querer contratar o período integral para os seus filhos, mesmo se você não está trabalhando?”, “Que lindo vestido de flores você está usando! Você não é daqui, não é?”, “Como você tem tempo para andar sempre com o cabelo solto, brincos grandes e unhas feitas?”, “Você quer um treino na academia para ficar mais forte para carregar as sacolas do mercado, não é?”. E o mais triste disso tudo: três dessas perguntas foram feitas a mim por mulheres.
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Talvez, no Brasil, minha rotina de trabalho, de cuidados com a família e a casa era tão
intensa que eu não tinha sequer tempo para pensar nessas coisas, para ponderar no que existe por trás da chamada “mommy wars”, ou seja, naquela guerra encoberta em que mães que ficam em casa criticam mães que trabalham por negligenciarem seus filhos, enquanto que mães que vão ao escritório ou à indústria depreciam aquelas que ficam em casa afirmando que aquelas estariam perpetuando um estilo de vida retrógrado.
Como uma mãe expatriada, contrária a assimilações e licenciada do trabalho, eu me vi num limbo social e comecei a procurar um lugar possível no meio daquele campo de batalha, para o qual eu havia entrado despreparada e, desde então, eu me esforço para encontrar uma saída: um jeito pessoal de viver equilibrada numa sociedade bastante
desigual.
Passado o choque inicial da batalha aonde eu havia sido lançada, eu fui buscar alguma
explicação e descobri que a linda, organizada e nevada Suíça – com sua adorável pontualidade e uma atitude duvidosa em relação ao ouro judeu guardado em seus bancos durante a Segunda Guerra Mundial – não deu direito de voto às suas mulheres até 1971. Inclusive, em algumas partes da Suíça, as mulheres só conseguiram votar a partir de 1990, porque viviam em cantões conservadores e ultra religiosos.
Acho que antes de me mudar para cá, eu pensava que, sem dúvida, eles viveriam num
mundo igualitário. Particularmente, eu fiquei surpresa com o que vi por aqui, porque para mim a Suíça é uma nação afluente, sedia inúmeras organizações internacionais e empresas globais, não é uma teocracia, uma monarquia ou uma ditadura.
Eu não me contive: como explicar isso? Algumas leituras apontam que, talvez, a resposta
esteja na Segunda Guerra Mundial. Enquanto a França, Alemanha e Grã-Bretanha tiveram muito do seu trabalho feito por força das mãos femininas durante aquele período, essa visibilidade das mulheres evitou que as demandas baseadas no gênero fossem ignoradas.
Por sua vez, a neutralidade da Suíça significou que as mulheres não se afastaram tanto da cozinha e da vida doméstica em geral, e que suas bandeiras ficaram enfraquecidas nas discussões políticas do pós- guerra.
Claro que é difícil quantificar o impacto causado por um direito de voto tão tardio. Mas
outras desigualdades também se mantiveram por bem mais tempo na Suíça, por exemplo, o direito à licença maternidade remunerada por um período de 14 semanas somente veio a ser implementado em 2005, apesar de já estar ancorado na Constituição suíça desde 1945.
Nas conversas que tenho tido com as mães que trabalham, o turno parcial parece ser a
norma para essas mulheres; e o número de mães que preferem deixar o mercado de trabalho após o nascimento dos filhos é surpreendente (aproximadamente 1 em cada 4 mulheres). A pergunta que me intriga, mas que eu ainda não tive a ousadia de inquirir, é se essa escolha é livre ou se, socialmente, as mulheres são pressionadas a viverem uma vida dos anos 50.
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A sensação que eu tenho é que, considerando que em muitas escolas públicas as crianças
costumam voltar para almoçar em casa diariamente, e depois retornam às aulas até as 15hs, e que além das férias de Natal e de verão, existem outras pequenas folgas quinzenais no início do outono e da primavera; e dado o elevado custo de colônias de férias ou de serviços de babás – o modelo de vida que é ofertado às mães suíças tende a ainda enquadrá-las como “anjos do lar”.
Por fim, a Suíça me fez sair da zona de conforto. A partir dessas constatações cotidianas,
eu me envolvi num grupo de pesquisa sobre gênero e violações de direitos humanos, tenho
avaliado casos e escrito sobre isso. Bastou um novo olhar estrangeiro, e surgiram muitos
aprendizados!
Para mergulhar nessa história, eu sugiro o filme “A Ordem Divina” (L’Odre Divin –
2017), da diretora Petra Volpe, que se passa num vilarejo suíço, em 1971, quando uma mãe e dona de casa se engaja na luta pelo direito de voto das mulheres.
6 Comments
Amiga Lucia
Muito interessante seu relato sobre uma realidade vivenciada e conhecida por poucos. Confesso que desconhecia esses fatos. Parabéns pela iniciativa. O debate sempre é relevante em qualquer sociedade. Abraços.
Bruno
Bruno, obrigada pelo incentivo! Quando me deparei com essa realidade, eu quis compreendê-la melhor porque para mim também pareceu inacreditável. O importante sempre é o aprendizado… Abraços!
Olá Lúcia, gostei muito do seu texto e mandei o link para vários amigos e parentes para que possam compreender melhor a sociedade em que vivo.
Moro em Lugano há doze anos e sou mãe de quatro crianças e digo por experiencia que o que se pensa aqui é que uma mãe que pode decidir estar em casa e criar os próprios filhos é uma privilegiada.
Fui mãe cedo, aos meu vinte aninhos de espontaneidade e imaturidade. Morava na Suíça desde os 15 e não tendo concluído grandes estudos, para mim foi normal a decisão de ficar em casa. Não vou prolongar escrevendo toda a minha biografia, só gostaria de explicar o motivo pelo qual me ofendi ao mesmo tempo que adorei o texto e toda a sua colocação! Me ofendi pois não era essa a mulher que eu sonhava que um dia seria, e existe certamente um pouco de rancor entre as garota que fui e a mulher que me tornei. Mas admito que, passados sete anos e quatro filhos desde que me vi neste dilema pela primeira vez, eu sou a mãe que eu sonhei ser!
Sempre digo que, de certa forma, o bem-estar economico na Suíça – já que nos países que rodeiam a Confederação dois salários em uma economia doméstica é quase uma obrigação – diminui a independencia feminina. Me perguntava quantas mulheres no Brasil não decidiriam ficar em casa, se pudessem!
Contra os meus argumentos você cita muito bem os fatos históricos que provavelmente influenciaram essa mentalidade. Pois de mentalidade se trata.
Obrigada por essa palmada e pela consequente auto-analise!
Beijos e se vieres em Lugano tens uma amiga.
Nathalia,
Gostei muito das suas ponderações, principalmente, porque você adicionou uma reflexão importante: o desenvolvimento econômico e o bem-estar social, tão propalados na Suíça, não se traduziram numa consequente igualdade de gêneros. Enfim, também me reconheço em sua fala, pois ser mulher e ser mãe provoca em nós conflitos pessoais e paixões incondicionais! Ótimo fazer novas amizades por aqui, e se você também passar por Basel não deixe de me avisar! Beijos
OI LUCIA, TUDO BOM? ME CHAMO NATALIA, POR COINCIDÊNCIA TAMBÉM SOU DE BAURU E MORO E BASEL DESDE 2010. ENCOTREI SEU TEXTO POR ACASO E GOSTARÍA MUITO DE ENTRAR EM CONTATO COM VC. POR FAVOR, SE PUDER ME MANDE UM EMAIL PARA PODERMOS CONVERSA.
Olá Natalia,
Infelizmente a colunista não colabora mais com o BPM.
Obrigada pelo seu comentário e continue nos acompanhando.
Equipe do BPM