Morar no Oriente Médio é, intrinsecamente, estar imerso no mundo Islâmico. Se saímos às ruas, nos deparamos com mesquitas e pessoas usando as vestimentas típicas, que têm uma conotação cultural, mas sobretudo religiosa; e mesmo em nossas casas, podemos ouvir os chamados das orações 5 vezes ao dia. Temos a necessidade de moderar os nossos costumes, nos adequando ao deles, especialmente durante o Ramadã e, claro, estamos sujeitos à Sharia, a Lei do Islã.
Uma preocupação comum de quem vem morar por esses lados é quanto à prática de sua fé, quando ela é não-muçulmana. “Será que é proibido seguir outra religião?”. “Será que existem igrejas cristãs?”. “Como será a vida de um cristão em um país muçulmano?”.
O foco deste artigo será no Cristianismo, já que é a religião predominante no Brasil e também a minha, sendo mais fácil falar sobre o assunto.
Minha primeira preocupação “prática” em ser cristã a caminho de Abu Dhabi foi justamente no processo de mudança: e aí, será que eu posso levar itens e conteúdos religiosos? Algumas empresas que entrevistamos para a contratação da mudança foram enfáticas: qualquer tipo de material religioso terá a sua entrada negada. Outras já falaram que os Emirados Árabes é um país mais “liberal” e que não confiscaria nossas coisas. Bom, eu resolvi arriscar: coloquei os vários terços, imagens de santos e livros espíritas na mudança e cruzei os dedos para chegar tudo. E chegou! Nenhum item foi retirado! Ufa… Posteriormente, soube de outras pessoas que também levaram bíblias e imagens de entidades do candomblé – apesar de acreditar que eles não identificaram como “religioso”. De acordo com as autoridades locais, só haveria problema na entrada de materiais religiosos se os mesmos estivessem impressos em árabe. Não era o caso.
Os Emirados Árabes Unidos se orgulham de serem considerados um país aberto e tolerante com outras religiões e, na prática, intereferem pouco nessas atividades. Respeitar o Islã é tido como obrigatório, mas blasfemar ou cometer sacrilégio contra qualquer religião é profundamente ofensivo. O descumprimento dessas regras pode resultar em prisão ou deportação, previstas pela Constituição do país. O proselitismo de muçulmanos é proibido e também pode suceder nas mesmas penas, mesmo que seja praticado de maneira inconsciente, tanto é que o ensino de qualquer religião que não seja o Islamismo não é permitido em escolas públicas. Por causa dessas questões, é importante ficar atento a manifestações de fé em público como, por exemplo, colocar terços ou adesivos de cunho religioso no carro e usar vestimentas ou acessórios que “denunciem” a sua crença, como as camisetas de imagens de santos e crucifixos. Eu, pessoalmente, não achei nenhuma informação específica sobre isso, mas como o proselitismo tem uma interpretação muito ampla, é melhor evitar – e é o que eu tenho feito.
Cerca de 76% da população dos Emirados Árabes é muçulmana, 9% são cristãos e 15% estão em “outros”, segundo o censo de 2005 do Ministério da Economia. Vale observar que a população local (que é somente 10% da população total do país) é em sua totalidade muçulmana e a eles não é permitido mudar de religião, sob pena de morte. Cristãos, se comparados a outras religiões, são bem vistos no país, por serem considerados “do Livro”, uma forma de se referir a cristãos e judeus, que acreditam em Deus e são monoteístas.
Existem algumas igrejas cristãs no país, construídas em terras doadas pelos governantes de cada Emirado. Em Abu Dhabi, há igrejas Católicas Romanas (St. Joseph’s Cathedral, St. Therese Church e St. Paul’s Church), Anglicana (St. Andrew’s Church), Protestante (Evangelical Community Church of Abu Dhabi) e Ortodoxas (St. Stephen’s Syrian Orthodox Church e St. George Orthodox Cathedral). Uma curiosidade é que as igrejas não têm permissão para exibir uma cruz ou colocar sinos fora de sua propriedade e isso, na minha opinião, retirou a opulência das igrejas católicas, deixando-as mais parecidas com as igrejas de outras religiões. O governo local permite ainda que as igrejas recolham o dízimo e recebam dinheiro do exterior, além disso, podem anunciar na imprensa as celebrações de feriados, serviços fúnebres, convenções religiosas, concertos de corais e eventos para angariação de fundos.
As missas e os cultos são celebrados em várias línguas, mas infelizmente ainda não há em português. A primeira missa no nosso idioma realizada no país foi durante o mês de outubro deste ano, em Dubai. Para os protestantes, há um grupo de brasileiros que se reúnem para estudo e adoração em uma sala na Evangelical Church. Aos que seguem a Doutrina Espírita, como eu, criamos recentemente 2 grupos de estudos do Evangelho, que estão sendo realizados nas casas das pessoas. Essa prática também é permitida, desde que sigamos as regras já explicadas anteriormente. Foi uma grande surpresa quando me deparei com várias pessoas interessadas em participar desses estudos. Muitos não conheciam bem o Espiritismo, mas estavam ali em busca de uma palavra de conforto e paz, que pode vir de diferentes maneiras.
Ainda não passei nenhum Natal ou Páscoa no país, mas sei por pessoas que estão há mais tempo e em pesquisas na internet que esses feriados cristãos são amplamente reconhecidos. Assim como em outros países, os shoppings ganham decoração especial, com direito a coral natalino e Papai Noel. Desde outubro, já comecei a ver algumas lojas vendendo artigos de decoração de Natal, mas por garantia eu trouxe as minhas do Brasil, só faltou mesmo o presépio… E agora, será que encontrarei por aqui?
12 Comments
Ola. S€rio que apostasia ai e crime? Sabia que na arabia saudita era, mas aieu achava que fosse mais liberal.. Pena de morte??!! Enfim, me explique melhor isso, os locais reclamam muito de nao poder mudar de religiao? Existe algum “projeto” feito pelos nativos para mudar essa situaçao? Se um nativo muçulmano for pego praticando outra religiao, ele tb sera punido ou essa pena eh só para quem manda a carta de apostasia (nao sei se eh uma carta ai tb)??
Qualquer outra religiao ou irreligiao eh respeitada pelo estado ou existe alguma que eh proibida ou perseguida?
Enfim acho que so tenho isso pra perguntar kkkkk
E ah esse nao eh o unico pais islamico que se decora os shoppings e se comemorao natal, li uma vez que no Irã tambem se faz isso.
Oi Annyee, obrigada pela visita! Bom, quantas perguntas difíceis, vamos ver se consigo te ajudar! Assim como na Arábia Saudita, aqui é um país muçulmano, regido pela Sharia, a Lei do Islã. É claro que aqui é muito mais “liberal” se comparado ao país vizinho, mas isso não os isenta de estarem regidos por essa mesma lei religiosa e restritiva. O que muda, nesse caso, são as leis do país, mas as da Sharia são as mesmas. Em tese, a pena de morte pode ser aplicada aos muçulmanos que se converterem a outras religiões. Eu digo em tese porque nesse caso as leis do país também terão influência sobre o julgamento. Bom, é o que eu acredito, mas não tenho certeza e também não encontrei nada a respeito na Internet (dá para imaginar, já que é um assunto tão polêmico, não é mesmo?).
Vou ser sincera e te dizer que não faço a MENOR ideia se existe algum “projeto” ou “movimento” dos locais para mudarem de religião. Pessoalmente, acho isso muito improvável, impensável e absurdo. Religião para eles não é algo que remete somente à prática da fé, mas é sobretudo cultural. Não consigo imaginar um emiradense não sendo muçulmano; é simplesmente algo que não faz o menor sentido! Todas as áreas da vida deles são intimamente relacionadas ao Islamismo. Não dá para desvincular uma coisa da outra. Me desculpe, mas não sei se estou conseguindo me expressar bem, é um assunto muito complexo.
Eu não sei se eles precisam enviar uma carta se declarando “não-muçulmanos”. Como você pode imaginar, não é algo muito comum ou divulgado por aqui.
Até onde eu sei, nenhuma religião é perseguida aqui em Abu Dhabi.
Muito obrigada pelo seu comentário. Volte sempre!
Mais uma vez um texto lindo Polly. Parabéns!!
Obrigada, Renata querida! Beijo grande!
Complicado praticar outra religião em meio a tanto fanatismo, até imagino o quanto deve ser pavoroso conviver com esta realidade, aqui no Brasil, sendo um país laico, muitas vezes acontecem conflitos religiosos ao expressar a fé,presenciamos criticas e ataques, quem dirá num país muçulmano, né Polly, todo cuidado é pouco para não “infringir” as leis impostas por eles!
Oi Márcia, obrigada pela visita! Então, precisamos mesmo ficar atentos para não infringir as leis locais, mas sobretudo não desrespeitá-los. Nós é que somos os estrangeiros “invasores” e precisamos dançar de acordo com a música que eles colocam, certo? Acho que ficar se lamentando por sofrer algumas restrições não nos leva a lugar algum, especialmente quando estamos falando sobre expressões de fé. Para mim, ser cristão também é ser tolerante e compreender que cada um possui o seu próprio tempo e amadurecimento espiritual. Não gosto de julgar o “conjunto” pelo mau comportamento de alguns, assim como também não gostaria que me julgassem dessa maneira. Pela minha própria experiência, aprendi que devemos respeitá-los acima de qualquer coisa e aprender com eles sempre que possível, tentando nos livrar ao máximo de julgamentos e generalizações. Beijo grande e volte sempre!
Olá adorei a matéria!! Onde vcs fazer os estudos espíritas em Abu Dhabi??
Olá, Bia! Obrigada pela visita. Realizamos os estudos espíritas aos domingos e às terças nas casas das pessoas. Se quiser saber mais detalhes, por gentileza, me envie um e-mail que eu te explicarei melhor. Beijos! Meu contato é: diariodepolly@gmail.com
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Oi Poliane, muito bom ler sobre o artigo!
Sou muçulmano e sempre me interesso em saber como cada país regido pela Sharia lida com pessoas de outras religiões. Por que isso? Porque a Sharia não é uma “lei escrita em livro sagrado”, de uma forma padronizada e única, ela não é o Alcorão, ela é baseada em um tradição oral dita por diferentes pessoas e épocas e muitas delas são interpretadas de forma diferente, algumas delas nem consideradas “confiáveis” elas são, se você está dentro do Islam você percebe muito isso, principalmente se você compara a Sharia dos Xiitas.
Sobre movimento para que houvesse conversões de muçulmanos ao cristianismo é a outras religiões é muito mais complicado do que considerar como algo simplesmente cultural, é a mesma coisa de um Cristão querer se tornar Judeu e “jogar fora” a sua fé em Cristo e no Evangelho, nem preciso comentar sobre religião orientais ou animistas, é uma mudança muito radical que afeta literalmente a fé da pessoa e isso é complexo e pessoal.