Um dia trabalhando com franceses
Chego esbaforida no prédio onde trabalho e mal tenho tempo de tirar o capuz antes que Audrey, a recepcionista, me cumprimente com um bonjour cantado. Respondo igualmente cantando e passo meu cartão de acesso para pegar o elevador. Uma musiquinha irritante toca enquanto o elevador sobe até o quinto andar, e eu tento ajeitar meus fios arrepiados pela parca.
Eu tinha que ter chegado há cinco minutos. Detesto reforçar o estereótipo de brasileira atrasada, mas eu e o despertador temos um relacionamento conflituoso – piorado pelo sol que nessa época só nasce bem depois das oito. Consolo-me pensando na existência dos quinze minutos de politesse: em Paris, você chega quinze minutos mais tarde que o horário marcado, como cortesia (a tal politesse) à pessoa que marcou, caso algo tenha dado errado e ela ainda não esteja pronta. No resto da França, esse tempo é reduzido a cinco minutos.
8h20 – A bise
Entre o lobby e minha mesa não encontro ninguém. Ufa, ainda estão todos na pause café. Vou conseguir chegar na minha mesa e respirar um pouco antes de… “Salut Laura, ça va?”, ouço do Alexandre, um colega que vem da direção oposta à qual eu chegara.
Eu começo a responder o “oi, tudo bem”, mas antes fazemos a bise. Sabe aqueles dois beijinhos no ar que você dá quando encontra um amigo ou membro da família? Aqui você faz com seus colegas de trabalho também. Até com seu chefe. Até com o chefe dele. Pois é. Lembre de sempre começar indo com a cabeça para a esquerda, evitando encontros estranhos.
Conversamos enquanto preparo o que vou precisar para a manhã, sem me dar ao trabalho de tirar a parca. No meio tempo, chegam os outros colegas da área, cheirando a café. Tenho sorte que ninguém ali fuma, já que o cheiro me desagrada e, na França, uma pessoa em duas fuma. Cada um dos colegas para, faz a bise comigo, papoteia. Quando vejo minha chefe já esta chamando para irmos para a reunião.
11h22 – A politesse é o mais importante
Ofereço-me para ir dirigindo enquanto minha chefe resolve os problemas que já surgiram. Hoje vai ser um dia daqueles, noto. O engarrafamento começou antes do esperado por causa de um caminhão quebrado. Chegamos atrasadas para a reunião da qual somos responsáveis, ganhando olhares de repreensão de todos. Nessa hora sou lembrada que aqueles tais quinze minutos de politesse não se aplicam a negócios.
A reunião de coordenação dos canteiros da obra avança muito lentamente. Tenho a sensação que as pessoas esqueceram que temos o mesmo objetivo. Chegamos em um assunto particularmente complicado e tenho que me esforçar para manter a atenção, já que estamos andando em círculos e as vozes aumentam cada vez mais. Do nada ouço um “Vous pouvez tous vous faire foutre!” – um jeito nada polido de mandar todo mundo se catar.
O silêncio desce sobre a mesa. O homem que pronunciou a frase, da empresa contratada pela nossa, está lívido de raiva, e recebe da minha chefe um convite de se retratar e agir profissionalmente ou sair da reunião. Ele opta pela segunda alternativa, e sai batendo o laptop para fechá-lo, puxando rudemente os cabos conectados a ele e empurrando a cadeira, que cai.
Termina de catar suas coisas com brutalidade e então deixa todos de queixo caído ao parar para apertar a mão de cada um ali presente e dar tchau. Para terminar com chave de ouro, ele sai batendo a porta. ”Ele não queria ser impolido”, me assegura em voz baixa minha chefe, continuando a reunião em seguida.
12h46 – Os almoços são rápidos
Saímos do prédio e encontramos com os colegas de outras empresas para almoçar. A tensão do ocorrido na reunião vai aos poucos sendo liberada, conforme fazemos nossos pedidos e a garçonete brinca conosco, reclamando que não era a nossa comanda de sempre.
Logo chega uma garrafa de água e uma cestinha de pão. Gratuitos, claro. Água e baguete não se nega a ninguém, dizem. O primeiro a se servir de água serve a todos os outros – isso é ser gentil. E na França o mais importante, depois de ser polido, é ser gentil.
Os pratos começam a chegar, mas ninguém come. Duas cestas de baguete já foram consumidas, ninguém está esfomeado. Ainda naquela questão de gentileza, espera-se que todos tenham comida em sua frente antes de desejar “Bon ap’!”, bom apetite, e começar a comer.
Não leva dez minutos até que todos tenham terminado seus pratos. Exceto eu. Começo a me sentir agoniada, porque os franceses comem muito rápido, sempre. E ninguém vai fazer nada antes que eu termine, nem adiantar os pedidos da sobremesa.
Os almoços durante o horário de trabalho não costumam levar nem meia hora (mesmo se tiver pão, entrada, prato principal, sobremesa e queijo – o que não é raro), já que o que realmente interessa é a pause café. Tento terminar logo sem me engasgar com a comida.
14h30 – Pessimismo
De tarde estamos de volta ao escritório. Onde trabalho é tudo open office, o que me disseram ser uma maneira menos formal de trabalhar, facilita a comunicação, etcetêrá etcetêrá. Logo começam os muxoxos e reclamações. Ça fait chier, diz um. Bof, il me soule, esbraveja o outro. E assim segue o baile. Eles trabalham com afinco, mas sempre encontram algo para queixar-se. Tento ignorar o máximo que posso.
16h05 – A pause café é sagrada
On fait une pause? Fazemos uma pausa? Esse é o convite para parar o que está fazendo e ir tomar um café, chá ou mesmo água enquanto se fala sobre a vida. É bem comum ter alguém que comprou viennoiseries ou que fez bolo e trouxe para dividir, mas de tarde já não sobrou mais nada.
A pause café acontece todos os dias, de manhã e de tarde, e dura algo entre quinze minutos e meia hora. É considerada parte essencial do dia de trabalho, para relaxar um pouco e repor as energias.
Lembro-me de no começo ter achado estranho quando fui procurar um colega e me responderam que ele estava na pause café, logo em seguida me avisando para não ir até lá perguntar porque era a hora da pausa. Hoje já sei que os franceses são muito orgulhosos de seus direitos trabalhistas e que fazer uso deles é quase uma obrigação.
Durante a pause, se fala de tudo e de nada. Perguntam sobre seus planos pro fim de semana ou como foi sua última viagem, e se interessam pela resposta. Ali, entre engenheiros, todos são considerados iguais, não se usa o vous (forma mais formal de chamar alguém). O cara da outra seção que você mal conhece é tu, seu chefe também. Por outro lado, se for conversar com alguém da TI ou da limpeza, é uma ofensa usar o tu.
17h40 – O fim do dia
Depois da pause, a tarde termina sem que eu veja. Aqueles que pretendiam sair cedo não participaram dela, e 16h45 já tinham dito au revoir. Sair na hora que o dia acaba não é mal visto, dado que você trabalhou direito durante o dia. Os horários quando se trabalha em escritório costumam ser bem flexíveis, pelo menos na minha área. Vejo a escuridão da meia-noite e me empacoto toda para sair. Dessa vez, dou só um tchau coletivo. Ainda bem que para ir embora não precisa fazer a bise em todo mundo.
A la prochaine !
2 Comments
Laura, seu texto é uma delicia. Adorei a sua rotina, rsrsrsr. Comecei a estudar francês agora, quem sabe em alguns anos não seja eu a ter uma rotina assim, hahahaha. Beijo
Olá Michelle,
Infelizmente a colunista não colabora mais com o BPM.
Entretanto, fique à vontade para ler textos de outras colunistas sobre a França.
Obrigada pelo seu comentário e continue nos acompanhando.
Abs,
Equipe do BPM