A quarentena e coronavírus no Chile
Essa semana completei dois meses sem sair de casa. Moro em Santiago, a capital do Chile. Na segunda quinze de março, a empresa onde eu trabalho optou pelo trabalho de casa – é uma agência de marketing digital, então, faz todo o sentido usar a tecnologia para trabalhar sem precisar sair. O jardim que a minha filha frequenta também suspendeu as aulas.
Inicialmente, o Ministério da Educação tentou controlar a situação e antecipou as férias de inverno em toda a rede escolar. Como se o fato de mudar a ordem natural das coisas pudesse solucionar o que não tem solução (ainda) – a pandemia. Quando terminaram as férias de inverno antecipadas, obviamente, nenhum estabelecimento de ensino pôde voltar às aulas.
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Dois meses em casa
Nesse período de quarentena, eu e minha filha saímos apenas uma vez para ela tomar a vacina contra a influenza na escolinha. Foi bem difícil para ela porque uma criança de cinco anos demora um pouco para assimilar uma mudança tão grande como o fato de não poder mais sair na rua sem usar máscara – agora é lei no Chile, o uso de máscara é obrigatório.
Ela foi o caminho todo no meu colo, assustada. Chorou na hora da vacina, me abraçou forte e não soltou a minha mão no caminho de volta. As ruas do centro da cidade estavam bem vazias e o que mais em chamou a atenção foi ler as frases de protesto pintadas nos muros e pensar que elas ainda fazem muito sentido não apenas para o Chile, mas para o mundo inteiro.
“El consumo te consume” escrito em tinta vermelha, na época da convulsão social que explodiu em outubro do ano passado em todo o país, ganhou outro sentido na era pós-pandemia. Todo o comércio está fechado, com exceção de farmácias e supermercados.
Inicialmente, algumas localidades decretaram quarentena total, incluindo, Santiago Centro, onde eu moro. O governo disponibilizou um centro de atenção virtual onde era possível tirar uma autorização para sair de casa e que durava três horas. Servia não apenas para comprar insumos básicos, mas também para pais separados que precisam levar os filhos para a casa do ex, ou para pessoas que vivem numa cidade e trabalham em outra.
Região Metropolitana concentra casos
Acontece que enquanto o Chile comemorava suas cifras com poucos casos de contágio e de internações, as pessoas relaxaram nos cuidados. Com isso, a situação saiu do controle e o governo decretou quarentena total em toda Região Metropolitana de Santiago, que registra os maiores números de casos. Dos mais de 43 mil casos registrados, 32 mil são na região.
Minha filha tem aulas pelo zoom três vezes por semana e a escolinha manda atividades para a gente fazer com ela em casa. Um grupo de WhatsApp foi criado para facilitar a comunicação da professora com os pais. No meu trabalho, tenho reuniões diárias com meu chefe para rever as pendências.
Vai e vem todo dia
Meu marido é fotógrafo num jornal chileno, então, tem que sair todos os dias para trabalhar. Por conta disso, é ele quem faz as compras aqui de casa. Estabelecemos assim para que apenas um tenha que sair e para tentar reduzir as chances de contágio apesar desse entra e sai.
Sempre fui uma pessoa organizada e nunca deixo o apartamento sujo, mas agora tive que redobrar os cuidados por causa dessa situação. No edifício, os vizinhos criaram um grupo de WhatsApp para garantir a limpeza das áreas comuns, já que o pessoal da limpeza está dispensado por enquanto. Cada morador também é responsável pelo seu lixo e alguns moradores voluntários são os que separam o lixo seco e colocam na rua os containers nos dias da coleta para serem levados.
Em casa, lembramos nossa filha de lavar as mãos o tempo todo. Me considero uma pessoa super privilegiada porque moramos num apartamento amplo e somos apenas três pessoas, temos uma varanda onde chega sol mesmo no inverno, continuamos trabalhando e não tivemos redução de salários.
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Efeitos na economia chilena
Nem todos os chilenos estão vivendo a quarentena assim. Tem muitas demissões acontecendo, muita gente entregando imóveis em Santiago e voltando para sua cidade natal, inclusive, estudantes universitários. O governo não deu nenhum tipo de subsídio para trabalhadores e pequenos empreendedores. Apenas os grandes empresários estão tendo acesso a fundos.
É importante lembrar que o país já vinha sentindo o impacto econômico das manifestações de outubro de 2019. A instabilidade gerada pela má gestão do governo para lidar com os protestos por uma reforma constitucional foi agravada com a quarentena devido à pandemia.
Críticas ao governo do Chile
O governo de Sebastián Piñera tem sido bastante criticado por aproveitar o contexto da pandemia para frear a mobilização social pela nova constituição que estava em curso no Chile. O plebiscito marcado para abril foi transferido para outubro. O local onde os manifestantes se reuniam foi totalmente pintado e recuperado, numa forma de apagar a memória das lutas.
Para controlar os cidadãos, na quarentena total, o governo colocou o exército nas ruas e decretou toque de recolher. As fotos que ilustram esse artigo foram tiradas num sábado de quarentena total. Santiago parece uma cidade fantasma.
Ninguém quer ficar doente
Mesmo com todas as perdas econômicas, os chilenos estão respeitando o isolamento social porque sabem que adoecer é uma das piores desgraças num país onde o sistema de saúde é predominantemente privado.
Segundo o senador Guido Girardi, o Chile investe 3,1% do PIB em saúde, menos da metade do que qualquer país desenvolvido. “Temos um terço dos leitos de UTI que os países desenvolvidos têm por habitante e talvez por isso estejamos em uma situação mais frágil e precária “, afirmou em recente entrevista.
A pandemia obrigou os chilenos a usarem a máscara para se proteger do coronavírus e, ao mesmo tempo, expôs a cara mais perversa da desigualdade social que tanto incomoda o país. As panelas que se ouviam forte no início da quarentena estão em silêncio nos últimos tempos. Mas basta o presidente fazer um pronunciamento para que elas voltam a soar com toda força. Não se iluda, a COVID19 pode ter acalmado os protestos, mas o espírito combativo dos chilenos, jamais.